O atendimento a idosos e dependentes passa a ser uma ‘obrigação’ familiar
ISABEL FERRER Haia 3 ENE 2015 - 10:53 BRST - dE EL PAÍS
Depois de quase meio século de funcionamento intensivo, o Estado de bem-estar social muda de nome na Holanda e passa a chamar-se “sociedade participativa”. A medida envolve cortes orçamentários e grandes mudanças para a população. Desde o dia 1º de janeiro o auxílio aos idosos e às pessoas dependentes de ajuda, incluindo as crianças incapacitadas, se transforma em uma “obrigação moral” das famílias, amigos e vizinhos. E o descumprimento desse novo dever não está sujeito a punição legal, pelo menos por ora.
Somente quando a situação for insustentável, as pessoas que não têm como cuidar de si mesmas poderão ter acesso a um centro subvencionado. A recém-criada Lei de Cuidados de Longa Duração estabelece que caberá às prefeituras proporcionar o atendimento, para o qual receberão financiamento estatal.
O primeiro discurso da Coroa do novo rei holandês, Willem-Alexander, introduziu em setembro de 2013 a ideia da sociedade participativa, em forma de advertência e, também, de desafio. Por um lado, mostrava a insustentabilidade de manter, com a crise, um sistema de cuidado que em 2010 custou 23.500 bilhões de euros (75,9 bilhões de reais) ao erário público –com esse orçamento foram atendidos 250.000 dependentes em instituições públicas e outros 350.000 por meio de ajuda paga aos domicílios. Considerando o envelhecimento crescente nesse país de 16,7 milhões de habitantes, o desafio consiste em convencer os cidadãos de que têm de apoiar-se e ser responsáveis pelos que os rodeiam. A questão é saber se eles o farão espontaneamente. Porque, a partir de agora, o direito histórico de receber atendimento somente poderá ser exercido quando a pessoa não puder cuidar de si mesma e carecer de uma rede informal de apoio. Com essa mudança, o Estado pretende economizar 2,3 bilhões de euros este ano.
Menos Estado de bem-estar social na União Europeia
• A crise econômica, em alguns casos, e as políticas de linha liberal, em outros, levaram a cortes no Estado de bem-estar social de diferentes países da UE.
• Na Espanha, o financiamento da Lei de Dependência sofreu um corte significativo. Os beneficiários chegam a 723.000, mas há dezenas de milhares na lista de espera. O Governo deixou de pagar à Seguridade Social pelos cuidadores familiares.
• Na Suécia o corte de gasto e privatização da atenção a idosos foi um dos fatores que, em 2014, custaram as eleições ao Executivo de centro-direita.
• O Governo francês prevê reduzir em 21 bilhões de euros o gasto público, sobretudo em proteção social, este ano.
A Actiz, uma empresa dedicada a proporcionar ajuda a idosos e dependentes de qualquer idade, e com cerca de 2 milhões de clientes, teme que com a reforma possam ser cortados 55.000 empregos. Em conjunto, trabalham no setor 1,1 milhão de pessoas, e os sindicatos generalistas preveem a perda de até 100.000 empregos.
As primeiras mudanças começaram a ser notadas já no final do ano passado, antes de entrar em vigor a lei sobre os cuidados. Os idosos “que conservam sua vitalidade e podem cuidar de si mesmos” –segundo a definição da norma– foram abandonando as residências onde eram atendidos em grande parte à custa do erário público. Depois de uma avaliação de suas necessidades, seu novo domicílio é uma casa de aluguel baixo. Antes, eles pagavam a residência em função de suas pensões e o Estado completava o restante. Agora se espera que sejam ajudados, gratuitamente, por seus parentes, conhecidos ou vizinhos. Também podem acorrer em seu auxílio voluntários que receberão um pagamento simbólico para fazer compras, limpar, cozinhar, dar-lhes banho ou lembrá-los de tomar seus remédios.
“Nosso centro cuida de pacientes com Alzheimer e contava também com uma casa de repouso para idosos, que desapareceu. Há pessoas de 80 e 90 anos que tiveram de ir para um apartamento, na dependência da família. Não sei. Há famílias comprometidas, claro. Mas a sociedade está acostumada a pagar impostos para resolver o atendimento aos idosos. Veja que os parentes nem sempre moram perto”, diz uma enfermeira de Haia, que pede anonimato.
Os pacientes com Alzheimer não entram no contingente dos que serão enviados a casas de aluguel baixo. Também não haverá mudanças para as 200.000 pessoas (mais 10.000 crianças e adultos incapacitados, com assistência permanente em suas casas) atendidas em instituições especializadas.
Os candidatos à transferência pela nova lei têm muito claro o que querem. Segundo uma pesquisa da União Geral Holandesa para os Idosos, 65% preferem pagar profissionais para serem cuidados. “Eles têm a sensação de que, se vier um parente ou amigo, terão de ser muito agradecidos. Se pagam, ficarão mais à vontade para pedir o que precisarem. Mas, claro, tudo depende de suas pensões”, afirma a diretora desse sindicato, Liane den Haan.
Evelien Tonkens, professora catedrática, especialista no assunto, afirma: “Quem quer que o vizinho lhe dê banho?”. Em sua opinião, o desmantelamento do Estado de bem-estar visa à criação de uma espécie de “cidadania afetiva, na qual os voluntários sejam vistos como heróis”. Entre os riscos que aponta aparece a sobrecarga de trabalho para as mulheres.
Ben Paulides, vereadora do partido Democratas Liberais, em Wassenaar, município contíguo a Haia, se pergunta: “Haverá menor orçamento municipal para pagar às entidades assistencialistas. Se aqueles que atendem os idosos oferecem serviços a preços baixos, estarão qualificados?”.
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