Edição 2003 de 24 a 30 de novembro de 2013
Livro
Relato jornalístico mostra que a ditadura militar espionou até políticos goianos que não são de esquerda, como Irapuan Costa Junior, Iris Rezende, Ronaldo Caiado e Marconi Perillo
Euler de França Belém
O livro “Para Além do Jornal — Um Repórter Exuma Esqueletos da Ditadura Civil e Militar”, do jornalista e sociólogo Renato Dias, é uma espécie de enciclopédia do horror. O horror gerado pela ditadura civil-militar (1964-1985). Há de tudo um pouco na obra. Entrevistas, reportagens, investigação jornalística. O crítico mais exigente ou ranzinza dirá que faltam reflexão e distanciamento. O autor tem como defender-se desta ressalva. Primeiro, não se trata de um trabalho de análise. Ou melhor, há análise, sim, mas a partir das opiniões dos entrevistados. Estes fazem, aqui e ali, um balanço crítico da ditadura. Segundo, trata-se de jornalismo engajado, daí a ligeira falta de nuance — o que não quer dizer que, nas dezenas de páginas, não haja crítica (e autocrítica). Renato Dias faz um jornalismo, por assim dizer, de denúncia histórica. Na maioria das vezes, acerta, tem razão. É preciso frisar que um irmão dele, o adolescente Marcos Antônio Dias Batista, está na lista dos desaparecidos políticos. Ressalte-se que o engajamento, que é lícito, não é sinônimo, ao menos aqui, de mero denuncismo ou histeria. Em geral, a narrativa é sóbria.
Note-se que Renato Dias escreve ditadura civil-militar. Parece estranho, dada a historiografia em geral optar pelo uso restritivo de ditadura militar (ressalve-se que o historiador Daniel Aarão Reis Filho escreve ditadura civil-militar em seus trabalhos). Mas retirar o civil, excluindo o composto, é, de algum modo, reduzir a ditadura apenas à sua faceta militar. Mesmo antes do golpe, vários civis, como Magalhães Pinto, de Minas Gerais, Carlos Lacerda, da Guanabara, e Alfredo Nasser, Ary Valadão e os Caiado, de Goiás, conspiravam com os militares. Conspiravam e incentivavam os coronéis e generais a derrubar o governo constitucional de João Goulart. Alguns deles, como Magalhães Pinto e Carlos Lacerda, eram chamados de vivandeiras, pois viviam nos quartéis clamando pela reação dos militares. Depois do golpe, na formatação do regime militar, civis tiveram papel central. O arcabouço institucional da ditadura foi largamente construído por civis. A estrutura educacional foi reformulada em certa medida por civis. O planejamento e o sistema fazendário foram controlados por civis, como Roberto Campos, João Paulo dos Reis Veloso, Delfim Netto e Mário Henrique Simonsen. Pode-se dizer que, apesar da determinação militar, os civis tiveram relativa autonomia para mover-se no interior dos governos de Castello Branco, Arthur da Costa e Silva, Emílio Garrastazu Médici, Ernesto Geisel e João Figueiredo e impor suas ideias em algumas áreas. Na parte do jogo político-institucional, apesar da influência do general Golbery do Couto e Silva — um político-formulador extremamente hábil —, civis como Petrônio Portela e João Leitão de Abreu (assessorado pelo brilhante José Guilherme Merquior) foram decisivos. A ditadura foi cruenta, não resta a menor dúvida, mas poderia ter sido ainda mais cruenta não fosse a participação dos civis. É provável que alguns civis tenham atuado como agentes moderadores. Mas isto não é o foco de Renato Dias.
Há, neste livro, excelentes entrevistas, que reposicionam a história da ditadura. Porém o must é a exposição dos documentos elaborados pela ditadura civil-militar sobre cidadãos brasileiros. Ditaduras desenvolvem uma espécie de histeria persecutória: quase todo mundo é suspeito, até prova em contrário. A paranoia é a “doença” dominante dos regimes autoritários — à esquerda e à direita. Militares chegaram a investigar o general Golbery do Couto e Silva — sugerindo que, por defender a Abertura política, era comunista. Risível. Mas era assim. Os radicais da direita chegaram a espalhar desenhos de Golbery enforcado e tramaram seu assassinato. Só não foram adiante porque sabiam que o presidente Ernesto Geisel, um político mais duro do que Golbery, estava de olhos em suas ações.
Renato Dias mostra que Pelé e Hebe Camargo, que nunca ofereceram qualquer risco para os governos (ditatoriais ou não), e os ex-jogadores de futebol Casagrande e Sócrates, criadores da democracia corintiana, tiveram suas vidas devassadas. O repórter atilado mostra que, mesmo em plena democracia, em 1993, no governo de Itamar Franco, Pelé foi investigado por agentes públicos dos órgãos de segurança nacional. Ele teria afirmado que, ao tentar negociar os direitos do Brasileirão, pediram-lhe 1 milhão de dólares “por fora”. Casagrande, segundo os investigadores, teria apoiado até a Nicarágua.
No campo político, a histeria do setor de informação e segurança levou à investigação de Iris Rezende, Irapuan Costa Junior, Ronaldo Caiado e Marconi Perillo. Nenhum deles é ou era de esquerda. Um parente de Ronaldo Caiado, Leonino Caiado, foi governador na ditadura, na primeira metade da década de 1970. Irapuan Costa Junior governou o Estado na ditadura, sucedendo Leonino. Investigá-los era perda de tempo. Chegaram a grampear até os aposentos de Irapuan no Palácio das Esmeraldas e tentaram intrigá-lo com o regime militar. O jornalista e empresário Batista Custódio, editor-geral do “Diário da Manhã”, foi investigado pelo SNI. Nunca foi comunista. No máximo, é de centro. O escritor Bernardo Élis, autor do romance “O Tronco”, foi investigado pelos agentes secretos. Ele era apontado como “comunista”. No caso, verdadeiro: era mesmo de esquerda. Mas guerrilheiro, jamais. Era ligado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), o mais moderado grupo de esquerda do País.
A história da queda do Molipo — nebulosa, apesar dos estudos dedicados ao assunto, ainda lacunares — é ampliada por Renato Dias. Uma das integrantes, Maria Augusta Thomaz, que já foi biografada pelo jornalista, tem sua história retomada. Ela e outro guerrilheiro foram metralhados na região de Rio Verde sem que tivessem tempo de reagir. Pode-se afirmar que foram assassinados. No comando do grupo, um militar que dirigiu a Polícia Federal. Ele, porém, sempre negou que tenha participado do massacre.
Ao vasculhar arquivos da ditadura em Brasília, Renato Dias apresenta informações sobre Tarzan de Castro, que exilou-se na França, Athos Magno, exilado na Alemanha, a uruguaia Maria Cristina Uslenghi Rizzi (apresentada como tupamara pelos militares, não o era), Micheas Gomes de Almeida (mais conhecido como Zezinho do Araguaia), Elio Cabral e Divino Ferreira de Souza. Os três últimos fizeram treinamento militar na China e, por isso, a ditadura tinha interesse especial nos seus passos. Para escapar à caçada, Micheas e Divino Ferreira foram para a região do Araguaia. Lá participaram da organização da Guerrilha do Araguaia. Divino Ferreira, o Nunes, morreu. Mesmo gravemente ferido, teria sido torturado por militares. Micheas escapou e hoje é uma das fontes sobre a vida e as batalhas na região Sul do Pará e Norte do Tocantins (na época, 1972-1974, Goiás). Ele tirou João Amazonas e Ângelo Arroyo do cenário da guerrilha. Era um mateiro (guia) excepcional.
O médico Afrânio de Azevedo, que fez a cirurgia plástica no rosto do capitão-guerrilheiro Carlos Lamarca, é filho de um ex-deputado do PCB de Goiás. Ele conta como mudou o rosto de um dos mais famosos guerrilheiros da História brasileira.
Há histórias que já foram contadas. Mas Renato Dias reconta-as com sabor especial, consultando livros ou documentos. A história da morte (o termo assassinato talvez possa ser usado) do goiano Divino Ferreira de Souza, o Nunes da Guerrilha do Araguaia, é contada detalhadamente.
O Diário de Maurício Grabois saiu na revista “CartaCapital”. Parecia um assunto morto. Mas Renato ouviu os jornalistas Hugo Studart, mestre em História pela Universidade de Brasília (UnB), e Taís Morais, dois estudiosos da Guerrilha do Araguaia, para discutir a veracidade do próprio diário e, ao mesmo tempo, verificar se acrescenta mesmo alguma coisa à pesquisa. Taís Morais discorda de que tenha um valor excepcional, ao contrário do que sustenta o jornalista e pesquisador Lucas Figueiredo (devidamente ouvido). Ela não acredita sequer que se trate do verdadeiro diário do Velho Mário. O importante mesmo é que Renato Dias expõe os pensamentos divergentes com isenção, o que, certamente, contribui para a pesquisa histórica. Ele colhe a fala (os conflitos) dos entrevistados e a registra com precisão, mesmo quando, aqui e ali, contraria suas convicções. O homem de esquerda que há em Renato Dias não trava o repórter criterioso. Ele sabe que, se quer contribuir para o esclarecimento histórico e para o trabalho dos historiadores — que são aqueles que “juntam” tudo e, aos poucos, constroem as sínteses que permitem um entendimento mais amplo e nuançado do quadro —, precisa publicar as informações de modo isento, expondo inclusive as divergências e, mesmo, as filigranas.
No clássico “Combate nas Trevas”, uma das mais valiosas histórias da esquerda em armas no Brasil entre as décadas de 1960 e a primeira metade da década de 1970, o historiador Jacob Gorender critica duramente a ditadura, ao relatar, de maneira detalhada, a crueldade dos militares e policiais civis, como Sérgio Paranhos Fleury. Pesquisador criterioso, Gorender publica também os “equívocos” das esquerdas, como as delações negociadas (sob tortura, não se pode condenar aqueles que falam) e os justiçamentos de militantes, como Márcio Toledo, por um grupo liderado por Carlos Eugênio da Paz, da Ação Libertadora Nacional (ALN).
O assunto delações é delicado. Renato Dias o enfrenta e conta a história de Gilberto Prata Soares, que morou em Goiânia e militou na esquerda durante a (e depois da) ditadura. O repórter conta que ele entregou Honestino Guimarães e até o cunhado José Carlos Novaes da Mata Machado. Outras pessoas morreram em decorrência das informações de Gilberto Prata, que mantinha contato inclusive com o temível Sérgio Fleury. Assim como o Cabo Anselmo, ele era regiamente remunerado pelo aparelho de repressão.
A partir de uma entrevista de Cabo Anselmo ao programa “Roda Viva”, da TV Cultura, Renato Dias rediscute o seu papel na devastação da esquerda e, mais do que isso, sobre o paradeiro dos desaparecidos políticos. É possível que Anselmo, um dos “cachorros” preferidos do delegado Sérgio Fleury, dada a “qualidade” (confiabilidade e precisão) de suas informações, saiba muito mais e não tenha contado tudo, nem mesmo ao jornalista Percival de Souza (que o entrevistou longamente para um livro). Mas a estrutura de poder dos militares e dos policiais civis confiava em Anselmo? Confiava apenas parcialmente. Por isso dificilmente se pode dizer que Anselmo tivesse uma visão de conjunto da repressão, que era ampla e diversificada, com certa autonomia das forças militares e civis. Talvez não seja tolice admitir que Anselmo tenha obtido mais informações sobre os porões depois do fim da ditadura. Ele certamente é leitor dos vários livros publicados sobre o assunto. Que sabe mais do que tem contado, isto é praticamente certo. Mas certamente não quer comprometer alguns de seus protetores e (ex-) controladores.
Um dos pontos fortes do livro é a entrevista de Hugo Studart, ainda que, quem sabe, algumas coisas que diz ao repórter sejam mais sugestões do que “fatos estabelecidos”. Quem é o líder sindical, de codinome “Boi”, que mantinha contatos com o delegado da Polícia Federal Romeu Tuma? Ele diz que Anselmo possivelmente sabe a identidade de “Boi”. O livro também redimensiona o papel de Tuma na repressão. Há a tendência de se tratar Sérgio Fleury como o delegado “mau” e Tuma como o delegado “bom”. A história verdadeira pode ser outra? Pode, mas demanda pesquisa mais detalhada do que depoimentos.
Jornalistas vão apreciar a obra de Renato Dias, porque reúne informações dispersas em vários livros. Não só. Conta histórias velhas sob prisma novo. E, sim, relata histórias novas. Historiadores terão, sobretudo na exposição do conteúdo de alguns documentos e nos depoimentos, material para (ampliar ou reforçar) suas pesquisas. Todos ganham lendo o livro do repórter. Leitores de esquerda, de direita ou de centro não sairão insatisfeitos depois de examinar as histórias. Os de direita, se mais radicais, ficarão agastados com alguns trechos, mas certamente serão capazes de perceber que o repórter está exibindo material às vezes de primeira sobre o assunto.
Livros-reportagens na era do on-line e do texto curto
O que há de revelador em “História — Para Além do Jornal — Um repórter Exuma Esqueletos da Ditadura Civil e Militar”?
Renato Dias — O livro elucida crimes de violações dos direitos humanos ocorridos à época da ditadura civil-militar no Brasil. Como o desmantelamento do Molipo, uma dissidência da ALN criada em Cuba. Seis membros da organização foram assassinados entre os anos de 1972 e 1973, em Goiás. Mais: as circunstâncias da prisão, tortura, morte e desaparecimento do corpo de Divino Ferreira de Sousa, ocorrido em 1973, na Casa Azul, na guerrilha do Araguaia. A obra mostra como agiam os agentes da repressão infiltrados nas organizações de esquerda. Assim como temas leves como a vida privada de Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança. Ele traz entrevistas com Mário Magalhães, Leonencio Nossa, Tom Cardoso, Alex Solnik, além de reportagens e perfis biográficos.
Renato Dias — O livro elucida crimes de violações dos direitos humanos ocorridos à época da ditadura civil-militar no Brasil. Como o desmantelamento do Molipo, uma dissidência da ALN criada em Cuba. Seis membros da organização foram assassinados entre os anos de 1972 e 1973, em Goiás. Mais: as circunstâncias da prisão, tortura, morte e desaparecimento do corpo de Divino Ferreira de Sousa, ocorrido em 1973, na Casa Azul, na guerrilha do Araguaia. A obra mostra como agiam os agentes da repressão infiltrados nas organizações de esquerda. Assim como temas leves como a vida privada de Luiz Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança. Ele traz entrevistas com Mário Magalhães, Leonencio Nossa, Tom Cardoso, Alex Solnik, além de reportagens e perfis biográficos.
Há espaço, hoje, nas redações dos impressos para reportagens maiores e históricas?
Renato Dias — Espaços existem, mas eles são cada vez mais reduzidos. Em virtude da cultura da instantaneidade e do texto curto, marcas da era on-line. Daí a explosão, na última década, no Brasil e no mundo, no mercado editorial, de livros-reportagens. Há, sim, um nicho de mercado.
Renato Dias — Espaços existem, mas eles são cada vez mais reduzidos. Em virtude da cultura da instantaneidade e do texto curto, marcas da era on-line. Daí a explosão, na última década, no Brasil e no mundo, no mercado editorial, de livros-reportagens. Há, sim, um nicho de mercado.
Quais são os projetos futuros?
Renato Dias — A ideia é lançar, em 2014, “Pequenas Histórias — Cuba, Hoje — Uma Revolução Envelhecida ou a Reinvenção do Socialismo”, com fotografias de Juliana Dias Diniz e projeto gráfico de Carlos Sena. Mais: no dia 31 de março de 2014, quando se completa 50 anos do golpe de Estado civil-militar no Brasil, pretendo autografar “O Menino Que a Ditadura Matou”. A editora RD Movimento tem planos de lançar uma segunda edição de “Luta Armada/ALN-Molipo — As Quatro Mortes de Maria Augusta Thomaz”.
Renato Dias — A ideia é lançar, em 2014, “Pequenas Histórias — Cuba, Hoje — Uma Revolução Envelhecida ou a Reinvenção do Socialismo”, com fotografias de Juliana Dias Diniz e projeto gráfico de Carlos Sena. Mais: no dia 31 de março de 2014, quando se completa 50 anos do golpe de Estado civil-militar no Brasil, pretendo autografar “O Menino Que a Ditadura Matou”. A editora RD Movimento tem planos de lançar uma segunda edição de “Luta Armada/ALN-Molipo — As Quatro Mortes de Maria Augusta Thomaz”.
(De: Jornal Opção)
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