23 abril 2016

"Nascida em aldeia, durante anos sofri o choque cultural em meio a uma sociedade mirim consumista e televisiva"

DIA DO ÍNDIO

19/04/2016- 16h26min - de Diário Catarinense (Reprodução)

"Na aldeia em que nasci, eles falavam um dialeto próprio. Hoje lembro apenas das músicas, que cantávamos em rituais e festas"

Foto: arquivo pessoal / reprodução
Levei alguns anos para perceber que nem todo mundo achava normal comer cobra com farinha, nem toda criança tinha uma jaguatirica, um filhote de jacaré ou uma ema em casa como bichinho de estimação, que pouca gente tomava banho de rio todos os dias e se pintava com urucum e jenipapo. Andar descalço, com pouca ou nenhuma roupa, parecia muito normal na minha infância.

Nasci e vivi até os sete anos de idade em uma aldeia Apinayés, no interior do Tocantins, na região conhecida como Bico do Papagaio. Meus pais trabalhavam como indigenistas em uma aldeia de índios Timbira, uma etnia que fala a língua timbira da família jê. Na aldeia em que nasci, eles falavam um dialeto próprio. Hoje lembro apenas das músicas, que cantávamos em rituais e festas.


O idioma que usei toda a minha primeira infância se perdeu, junto às lembranças e sensações que ficaram lá no fundo de uma época em que corríamos o dia inteiro pelo mato, em bandos de 15 ou 20 crianças, todas indígenas e eu. Aquele era o meu mundo: correr o dia todo, catar fruta, tomar banho de rio; nunca houve distinção alguma, minha mãe me criou junto com as crianças da aldeia, fazendo tudo com a liberdade que elas sempre tiveram.

Na aldeia circular de casas de palha e argila fumegavam fogareiros de barro onde eram cozidas grandes cobras, lagartos, mucuras, tudo era compartilhado em cabaças que serviam como tigelas, passados na farinha que era feita na aldeia mesmo ou com beiju de mandioca e leite de babaçu. Lembro que vivia enfiada nas casas comendo junto com os índios. Quando voltava para casa, trazia sempre alguma coisa ou animal, pequenas cestas e brinquedos feitos por nós mesmos com argila ou palha. Eu era igual a eles ou, no meu olhar, eles eras absolutamente iguais a mim. Não havia distinção, preconceito ou qualquer outra forma de diferenciação...

Éramos crianças que a aldeia toda cuidava e alimentava. Essa é uma cultura em que as crianças são livres para brincar, não existe um adulto tomando conta, todos cuidam e todos alimentam todas as crianças. Tínhamos tatus, cotias e filhotes de todo tipo de animal, isso porque os muitos cachorros magros da aldeia eram usados para caça, não como animal de estimação.


Meu pai, Sebastião Fernandes, indigenista das primeiras gerações, havia escolhido aquela vida de sertanista e levado minha mãe Célia, na época com 19 anos, para morar numa aldeia, milhares de quilômetros longe da família e da “civilização”. Na época da vida na aldeia, diariamente seguíamos em fila todas as tardes para tomar banho de rio, onde os longos cabelos negros das índias eram lavados em água corrente. Havia ainda um ritual de cuidado, que era a catação dos piolhos. As avós catavam e comiam. Aliás, as avós muitas vezes amamentavam os netos que cresciam no colo entre uma catação de piolho e outra.

Lembro que as meninas casavam muito novas, ainda adolescentes, em festas com corpo pintado de vermelho do urucum e preto do leite do jenipapo. Lembro do cheiro até hoje, que se misturava com fumaça das fogueiras, e da palha sendo trançada para fazer as cestas que serviam para tudo, desde carregar comida, lenha, transportar tudo que fosse preciso durante os rituais fora da aldeia, como a festa da tora ou a corrida da tora.

Dessa festa ou ritual lembro que caminhávamos pela mata para longe da aldeia, levávamos água para beber em cabaças. No meio da mata, os jovens cortavam uma palmeira buriti, escavavam um pouco e pintavam de preto e vermelho, depois corriam pela mata com aquele pedaço de tora nas costas, acho que para provar sua força num ritual de passagem. Lembro que corríamos atrás pelo meio da mata ou em picadas abertas no Cerrado até a aldeia, onde a atividade terminava com festa e fogo.


Foi de uma índia mais velha que morava perto da nossa casa que ganhei o nome de Panty. Hoje posso andar de roupa, de sapato de salto, ir ao continente que for, falar a língua que quiser, mas vou carregar comigo o carimbo da infância na aldeia Apinayé. Está no meu nome e na minha vontade de andar de pé no chão, de questionar os comportamentos e costumes, de apreciar a vida em meio à natureza.

Durante muitos anos sofri o choque cultural de uma criança que viveu em aldeia em meio a uma sociedade mirim consumista e televisiva. Até os sete anos não vi TV, não tive os brinquedos da moda, não tive amigos que não fossem indígenas. Era diferente, demorei para entender os relacionamentos egoístas, preconceituosos e tiranos que as crianças da cidade tinham. Na aldeia não havia distinção ou classe social, não havia o “ter”, o “possuir”... tudo era da natureza ou criado por nós mesmos. Fazíamos pequenas trocas com o que tínhamos.

Uma vez em viagem para Goiânia ganhei uma sandália de couro prata, era uma coisa espacial, uma cor que não conhecia, passava o dia todo olhando para os pés. Imagine uma criança do mato com uma sandália prateada. Corri na tribo e troquei por um filhote de cotia, que era mais útil e mais divertido. Nunca mais soube dos pequenos amigos, que rumo tomaram...

Sei que a aldeia em que nasci não existe mais, parte migrou para a beira da Transamazônica para viver da venda de artesanato e parte foi para dentro da mata, criando uma nova aldeia. Restaram as fotos que meu pai fazia com uma máquina antiga e viraram monóculos (aquelas caixinhas plásticas com uma lente e uma imagem no fundo) e álbuns de um colorido desbotado. Cores vivas, músicas e sentimentos vibrantes, só na memória.

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