17 novembro 2014

As peladonas e o capitalismo selvagem

17/11/2014 - Do Blog Cleber Toledo


As peladonas do Rio Grande do Sul foram a sensação da semana na mídia. Como vieram ao mundo, tomaram conta de ruas e parques de Porto Alegre. No máximo boné e o par de tênis. Mais por proteção física, contra o asfalto e o sol, do que desgosto com as unhas ou os cabelos.

- Uma indecência! - reagiu Maria Cândida. - E você trate de tirar o olho dessa televisão ou vai morrer cego! - ordem direta para o marido, Pedro, pregado à TV. - Onde este mundo vai parar! Meu Deus!

- Que isso, mulher? Não era você mesma que estava me dando uma aula de feminismo semana passada? Dizendo que a mulher precisa se libertar de uma vez por todas? Mais liberdade que essa não existe...

Maria Cândida parou ao lado do sofá e encarou o cínico:

- E você disse que a mulher já estava liberada demais para o seu gosto! E agora está aí, todo feminista...

Pedro tentou explicar à mulher que não era nada disso. Havia algo de libertário e até revolucionário no ato daquelas gaúchas, que se despiram de toda pressão cotidiana, das frustrações afetivas, das imposições de uma sociedade machista, e se mostraram, acima de tudo, como seres humanos!

- Não vejo mulheres à minha frente... Vejo a humanidade inteira! Totalmente liberta, no ato mais audaz que já vi... Uma coragem que as levaram a quebrar estereótipos, o machismo e toda uma imposição capitalista histórica, que tenta nos transformar - a nós, seres humanos! - em máquinas, que pretende tirar a nossa humanidade...

De repente, Maria Cândida se sentia tocada com as sinceras, poéticas e filosóficas reflexões do marido. Não imaginava que esse mulherengo incorrigível, levado a rédea curta para se conter, pudesse renunciar à toda malícia, abstrair tanto e tirar lições tão preciosas de cenas de nudismo aparentemente tão lascivas.

- Mulher, vivemos num mundo muito cruel! Nossa carne - e apontava olhando fixamente para o nu mostrado nos ângulos mais diferentes pela TV - é mero produto de mercado, sem qualquer valor numa economia que coisifica o homem, sexualiza-o para comercializá-lo, como uma mercadoria vulgar, com uma única utilidade: dar lucro a um sistema insensível! 

Maria Cândida até se esqueceu da licenciosidade que enxergava naquelas imagens e passou a assimilar esse contexto, digamos, mais intelectualizado e puro que o marido enxergava naquele fenômeno sociológico. A mulher, já esquecida da promiscuidade que antes julgara assistir pelas ruas de Porto Alegre, lentamente escorregou a mão pelas costas de Pedro e foi se aconchegando no sofá. Olhou fixamente para TV, não mais como se agredida por um filme pornográfico, mas como se contemplasse um quadro de Picasso.

- Enquanto elas correm despidas das embalagens que o capitalismo lhes impõem, recusam os rótulos que as segregam de uma vida plena, que lhes acorrentam em quatro paredes de uma empresa como encarceradas sem nunca terem cometido crime algum, sem sequer direito a um julgamento justo! Justiça? De que Justiça pode falar tal sociedade que aprisiona a nossa humanidade aos grilhões do desespero!

Maria Cândida a esta altura já envolvia num terno abraço todo o tronco do marido. Os olhos marejados mostravam com que intensidade fora impactada por palavras tão profundas.

Pedro, então, em segundos de silêncio, parecia buscar algo mais profundo com o intenso olhar que desferiu sobre o close que a câmera dava no quadril atlético da revolucionária gaúcha. Admirada, Maria Cândida reteve sua emoção para que nada atrapalhasse sua compreensão sobre a complexidade de pensamento que o marido engenhava em sua mente privilegiada:

- Que tatuagem é aquela? Uma borboleta?... Ai, mulher!

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